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TRÍDUO PASCAL

13 a 16 de abril de 2017
Pistas homilético-franciscanas

UMA PAIXÃO QUE SE TRANSFORMA EM COMPAIXÃO

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Cristo. Cruz-árvore. Árvore da Vida.
DA BASÍLICA DE SÃO CLEMENTE (Roma)



Introdução

Dentro da Semana santa, a “Semana Maior”, como era denominada antigamente, chegamos hoje, à culminância dos mistérios da vida de Jesus, o sumo da suma obra de Deus (“summum opus Dei”), que é a encarnação: o Tríduo pascal. O mistério da Paixão, Morte e Ressureição do Senhor se reveste de tal grandeza e profundidade que a Igreja lhe dedica três grandes celebrações que perfazem todas as horas de três longos dias.

QUINTA-FEIRA SANTA: CEIA DO SENHOR

Leituras: Ex 12, 1-8.11-14; Sl 115 (116), 12-13.15-16bc.17-18 (R. cf. 1 Cor 10, 16); 1Cor 11, 23-26; Jo 13, 1-15.

Tema-mensagem: Um amor novo e inaudito

Introdução

O primeiro dia do Tríduo pascal se dá na Quinta-feira santa. É neste dia (noite) que Jesus através de uma Ceia antecipa para os Apóstolos (Igreja) o mistério de sua Paixão.

1. Do resumo de uma Paixão

Toda a história da salvação não passa de inúmeras, repetidas, intensas e inusitadas tentativas de Deus entregar-se ao homem e de, cada vez, diante das reiteradas recusas e incorrigíveis infidelidades do seu povo, renovar sua esperança de um dia ser plenamente aceito, acolhido por este. Este processo, iniciado com a Encarnação do Verbo eterno do Pai, chega à sua culminância quando, na Sexta-feira santa, acolhendo a vontade do Pai até a morte e morte de Cruz, dá o último suspiro exclamando “Consummatum est” (Tudo está consumado)!

Este gesto, porém, além de um grande fato precisava tornar-se um grande ato que viesse a prolongar-se por todos os séculos até o fim dos tempos. Foi por isso e para isso que na véspera, Jesus, no meio de uma ceia, faz a entrega de seu Corpo e de seu Sangue aos apóstolos com a ordem de que a repetissem em sua memória até o fim dos tempos. O corpo e o sangue do Senhor, entregue numa celebração de ação de graças (“eucharistia”), que é a ceia e, ao mesmo tempo, sacrifício, seriam, assim, o viático, isto é, o farnel, a provisão essencial de alimentos e de fármacos, que a Igreja levaria consigo através de sua viagem pelos séculos da história.

Seriam a garantia de que o Senhor está com os seus discípulos todos os dias até a consumação dos séculos.

2. Na última Ceia o princípio de uma nova ordem para a humanidade

A iniciativa de Jesus de fazer a entrega não só de sua pessoa, mas também de toda a sua obra, vinha acompanhado com uma ordem e um gesto inusitados: amar como Ele amou e lavar os pés uns aos outros.

Tanto o mandamento como o gesto são inseparáveis entre si e inseparáveis do sacrifício da Cruz que ele padeceria no dia seguinte. Amar, pois, como Deus, como Jesus ama, um amor entranhado, que é capaz de ir até a morte e morte vergonhosa de uma cruz por seus amigos e inimigos, eis o novo sentido, o novo rumo que Jesus quer introduzir no coração e na história dos homens.

Porém, para que não pairassem dúvidas acerca deste novo princípio, deste novo modo de ordenar os homens, Jesus mesmo lhes dá o exemplo: a modo de escravo começa a lavar-lhes os pés. E, para que o exemplo caísse fundo em seu coração insiste: “Compreendeis o que acabo de fazer? Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem pois eu o sou. Portanto, se eu o Senhor e Mestre vos lavei os pés também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo para que façais a mesma coisa que eu fiz”(Jo 13,12-15).

Foi aí, portanto, neste ato e na lição deste novo e revolucionário ordenamento que Jesus lançou a raiz de sua nova existência no mundo e na história; foi aí e em cima deste princípio que foi concebida a Igreja; foi aí, em cima desta nova ordem, que Francisco, 1300 anos depois, dá início à sua Ordem de “irmãos” e de “menores”, querendo com isso, explicitamente, ressuscitar a Ordem dos Apóstolos, um tanto esquecida e obscurecida por uma Igreja bastante triunfalista. E para recordar que este foi o princípio de toda a sua vida e de toda a sua Ordem que, na hora da sua morte, o mesmo santo, pediu que os frades lessem o Evangelho da Última Ceia (Cf. 1C 110).

SEXTA-FEIRA SANTA

Leituras: Is 52,13-53,12; Sl 30 (31), 2.6.12-13.15-16.17.25 (R. Lc 23, 46); Hb 4,14-16; 5, 7-9; Jo 18,1-19, 42.

Tema-mensagem: Na Cruz a consumação da compaixão do Pai e de Jesus

Introdução

Em sua vida pública, por várias vezes, Jesus havia falado de sua “Hora”: a “Hora” de sua glorificação e da glorificação do Pai. Trata-se do momento, da graça de poder revelar, de fazer brilhar, transparecer o coração do Pai até o máximo, o sumo, com toda clareza e sem nenhuma fantasia ou dissimulação; o momento não apenas de transformar sua paixão numa grande compaixão, mas também de colocá-la como princípio de uma nova criação.

A grande Hora começa com a prisão de Jesus e termina com sua morte na Cruz. Mas, no desenrolar do longo tempo de uma noite e de um dia cheios de angústias, encontramos momentos ou horas menores que perfazem juntos o mistério da grande “Hora” que saiu do tempo para tornar-se eterna. A tradição cristã, em sua experiência de piedade, no espírito da oração e devoção, passou a chamar estes momentos de “Estações” (Via Sacra) ou de “Mistérios” (Santo Rosário). Estação é lugar de parar a fim de descansar um pouco, olhar a caminhada feita, refazer as forças e tomar novo fôlego para então poder continuar a viagem. Mistério, além de algo difícil de entender porque foge ao parâmetro de nossos conhecimentos e experiências, significa, acima de tudo, o recolhimento no velamento, na proteção de um encobrimento, onde o homem pode se encontrar em casa. É, para São Francisco, o santo modo de operar de Deus, que se doa e se retrai, que se des-vela e se re-vela, como o Deus abscôndito que ele é; um operar tão inaudito que precisa ser rezado, meditado e contemplado assim como o povo simples o faz na recitação do Santo Rosário
ou na celebração da Via Sacra. Os mistérios da Paixão são como que atos de uma grande obra. Vamos, então, acompanhar algumas destas estações ou mistérios.

1. Da prisão

A Hora de Jesus começa com sua prisão. Para expressar o indizível sofrimento deste momento os evangelhos sinóticos falam em temor, pavor, angústia. Era o momento em que começava a penetrar no imo de sua alma, na solidão de seu eu mais profundo, todo o desespero dos condenados ao inferno, dos banidos, dos abandonados e perdidos. Nesta solidão, a dor deles, segundo São Boaventura, vai se transformando, no coração, na alma de Jesus, em dor de compaixão, dor compartilhada, comungada, amada no sentido de um “endoidecimento amoroso” e de um “amor endoidecido” pelos homens. Era este amor que o levaria à suma entrega na Cruz. São Francisco, um dos mais fiéis imitadores da Paixão de Cristo, no monte Alverne, numa oração inusitada, pediu a Jesus que lhe concedesse a graça de poder provar daquele amor endoidecido e daquele sofrimento amoroso, compassivo, misericordioso: “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que me faças antes que eu morra: a primeira é eu sinta na alma e no corpo quanto for possível, aquela dor que tu doce Jesus suportaste na hora da tua acerbíssima Paixão. A segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor, do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para de boa vontade suportar a Paixão por nós pecadores” (CCE 2).

A dor de Jesus não era por Ele estar sendo traído, abandonado, injuriado, maltratado, mas pelo Pai que sentia, sofria vendo seus filhos jazendo nas mais profundas tristezas do inferno porque distantes Dele, perdidos, quais outros filhos pródigos, longe da casa paterna; por estes seus irmãos que vagavam pelo mundo sem rumo, sem caminho certo, que os conduzisse de volta a pátria de sua origem, à verdadeira Terra prometida.

2. Da traição

A “Hora” de Jesus era também o momento da sua entrega (traditio): ser entregue por Judas, o traidor (traditor), nas mãos dos sacerdotes, como cordeiro inocente e inerme. Judas oferece-lhe a graça de Ele poder revelar-se como “Aquele que é”. Por isso, agradecido, Jesus o chama verdadeiramente de “amigo”. Ele, o sumo sacerdote, a alma, a vida da religião, vai parar nas mãos dos sacerdotes e dos religiosos que em vez de servir, se adonaram de Deus e da Religião. Ainda mais. Jesus, em vez de esperar adianta-se aos seus perseguidores perguntando-lhes: “‘Quem procurais?’ E apenas ouviram ‘Sou eu’, eles tiveram um ímpeto de recuo e caíram” (Jo 18, 4b-6). Era como se um raio ou uma bomba explodisse à frente deles. A potência da voz do Verbo, “do Filho Único, que é Deus e está na intimide do Pai” (Jo 1,18), abala e faz os perseguidores caírem por terra. Mesmo assim, permaneceram irredutíveis na dureza de seus corações.

Estamos diante da mesma experiência de todas as teofanias do Antigo Testamento: o “Eu Sou” do Deus que se revelara a Moisés no monte Horeb, na sarça ardente, bem como nas famosas aparições a Abraão, Isaac e Jacó. Este “Eu sou” é sobretudo o Jesus da Cruz em cuja morte as rochas se fendem, os sepulcros se abrem e os mortos ressuscitam.

3. Da troca do inocente pelos culpados e assassinos

A Hora de Jesus aparece também quando, preso e amarrado como vítima sacrifical, é levado como o cordeiro para o matadouro, para ser interrogado por Anás e Caifás, os sumos sacerdotes daquela época. É o momento do processo e da condenação do Justo em favor dos injustos (Jo 18, 1 – 19, 16a); é o momento dos açoites, dos deboches, das cusparadas, da coroação de espinhos só porque declarou “ser filho de Deus” e “Rei de um novo Reino” que não é deste mundo. Os protagonistas deste processo e desta condenação são judeus e gentios. Assim, as duas partes da humanidade – do ponto de vista bíblico – se unem para acusar e condenar seu Salvador, Jesus. Mas, como não ver nestes protagonistas a todos nós? Pois, como diz São Francisco: “Não foram os demônios que o crucificaram, mas tu com eles O crucificaste e ainda o crucificas deleitando-te em vícios e pecados” (Ad 5). Ora, que vícios e pecados seriam estes senão, primeiramente, como diz São Francisco, “não amar aquele que sempre muito nos amou”, bem como, não amar, não lavar os pés daqueles que Ele ama e pelos quais ele deu a vida, principalmente “as pessoas vis e desprezadas, pobres e débeis, enfermos, leprosos e mendigos de rua” (RNB 9)!

4. Da negação e fracasso da Igreja ministerial e do seguimento distante e impotente da Igreja do amor

A “Hora” é também o momento em que os discípulos – a Igreja nascente e de sempre – fracassa no seu seguimento de Jesus Cristo. A traição de Judas e a negação de Pedro dizem, isto é, mostram, com eloquência, este fracasso. Os varões e chefes da Igreja interrompem seu seguimento. Não conhecem, nem reconhecem ou não querem conhecê-Lo e reconhecê-Lo. Apenas as mulheres o seguem, mas de longe, como quem contempla, impotente, o que está acontecendo. É como se a lua (a Igreja) se eclipsasse naquele momento, não podendo receber a luz do seu esposo, o sol (Cristo). A não ser parcialmente. A realidade terrena se interpunha ente ela e ele. Se a Igreja ministerial, representada pelos varões e chefes, fracassa, a Igreja do amor, representada pelas mulheres e pelo discípulo amado, pelo cireneu, pelo centurião romano, pelo ladrão arrependido, persevera no seguimento, ainda que de longe e mesmo que de modo impotente.

Hoje e sempre, em muitos ambientes, não estaria acontecendo o mesmo? São Francisco, numa de suas belas Admoestações, depois de exortar os frades a que contemplassem como o Bom pastor suportou a Paixão; que contemplassem como suas ovelhas O seguiram na tribulação e nas perseguições, assim se expressa: “Por isso, é grande vergonha para nós, servos de Deus, que os santos tenham feito obras e nós queiramos receber glória e honra apenas por citá-las” (Ad 6).

5. Do “Ecce homo”

Depois do interrogatório noturno na casa de Anás e do matutino no pátio da guarnição romana, começa um novo ato. Jesus assume o destino do Servo de Jahvé, previsto nos oráculos poéticos do livro de Isaías, o Inocente, que entrega suas costas aos que lhe batiam e as faces aos que lhe arrancavam a barba, isto é, àqueles que o despojavam de sua dignidade humana (Cf. Is 50, 5s). Os inimigos políticos (povo e líderes, judeus e romanos, Herodes e Pilatos) se unem para condenar o inocente e anistiar o culpado. Todos o recebem e o passam adiante. Ninguém quer ficar com ele. Ninguém tem coragem de assumir a responsabilidade de seu julgamento e de sua condenação. Todos se desculpam, e, assim, se manifestam como culpados. No fim, Pilatos apresenta-o ironicamente coroado de espinhos e coberto de púrpura, dizendo: “Eis o homem” (Ecce homo). Mas, é justamente neste homem, despojado de todo o poder, reduzido a nada, humilhado, escarnecido, em seu rosto, que brilha a glória de Deus (cfr. 2 Cor. 4, 6). “Eis o homem!” é o mesmo que “Eis o Deus!” (Ecce homo = Ecce Deus!). Meditando sobre esta passagem, D. Bonhoeffer diz:

Com uma eversão incompreensível de todo modo justo e pio de pensar, Deus se declara culpado em relação ao mundo e cancela assim a culpa do mundo. Deus mesmo empreende o caminho humilhante da reconciliação e absolve assim o mundo; ele quer ser culpado da nossa culpa, toma sobre si o castigo e o sofrimento que a culpa nos jogou sobre as nossas costas. Deus responde pela impiedade, o amor pelo ódio, o santo pelo pecador. Agora não existe nenhuma impiedade, nenhum ódio, nenhum pecado que Deus não tenha tomado sobre si, sofrido e expiado. Agora não existe mais nenhuma realidade, nenhum mundo, que não esteja reconciliado e em paz com Deus. Isso, Deus o fez no seu dileto filho Jesus Cristo. Ecce homo!

Assim, na Cruz, o Grande Rei concedeu a clemência e a anistia a todos os homens da humanidade, réus de morte, por causa de suas desobediências. Com isso, ele quis criar uma nova humanidade, um novo céu e uma nova terra.

Um novo céu e uma nova terra que chega a nós com a virada do nosso olhar nascido da graça do encontro com o Crucificado. Nesta virada, como outrora com Francisco, começa o desafio de tornar-nos capazes de ver, contemplar e acolher o “Ecce Homo=Ecce Deus” tanto nos homens cordeiros como nos homens lobos, tanto num São Francisco como num sultão, tanto num Maximiliano Kolbe como num Hitler, tanto num sacerdote santo como num depravado, tanto num crente como num descrente.

6. Da crucifixão

Chegamos, enfim, à “Hora” das horas: o momento da crucifixão e morte (Jo 19, 16b-37). Nisto, o mistério de Cristo, a revelação do “Deus absconditus” (Deus escondido), chega ao seu sumo. Se a paixão é a culminância da encarnação, que é a suma obra de Deus, a paixão e morte na Cruz é a culminância desta culminância. A grandeza e a importância deste mistério é tal que a Cruz se tornou o símbolo, a marca de identificação e de separação de seus seguidores dos seguidores do mundo com suas forças e projetos diabólicos de dominação, exploração quando não de guerras e destruição. Uma marca que ainda hoje, como naquela Sexta feira, incomoda os poderosos a ponto de, não apenas, retirá-la de diante de seus olhos, mas também, em certos lugares, de levá-los a eliminar os que a carregam em seu peito e em seu coração. Mas, o que acontece nesta hora para que se torne de tão grande importância para todos os cristãos e toda a história dos homens?

O grandioso desta Hora é que Jesus Cristo acolhe o não de Deus, que deveria ser dirigido a nós, como sua maior honra, glória e dignidade. Para que o Pai pudesse dizer, definitivamente, sim a nós, Jesus Cristo teve que receber o não do Pai. Este Sim atravessa toda a sua vida. Uma vida de fidelidade inaudita que quanto mais abandonado pelo Pai, mais crê, mais confia, mais se entrega; uma fidelidade que segue “passo por passo o caminho do abandono e da desilusão até alcançar o abismo do total abandono: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’” (Harada).

Assim, o Filho de Deus recebe o não do Pai, do Abba querido, por e para ser o Sim do mesmo Pai a nós, para que nós, de inimigos nos tornássemos amigos dele, de estranhos e escravos nos tornássemos familiares e filhos dele: o Céu, o Paraíso reconquistado.

7. Da entrega do espírito

Segue, então, o ato final, a consumação da Hora de Jesus que é assim descrita por João: “e inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19, 30). A entrega, a oferenda de si, estava completa. João não diz que ele expirou e então inclinou a cabeça. Diz o contrário: ele inclinou a cabeça e expirou. Ou seja, com toda a reverência e respeito, como aquele que se aproxima de um santuário, faz daquela morte o momento mais solene de sua vida, de consumar sua missão: expirar o sopro da vida divina, guardada e cultivada em seu coração, sobre o mundo, a criação toda, os homens todos e toda a sua história. Expirou! O sopro, o espírito de seu sacrifício, pleno de benevolência, é liberado de seu peito para ser infundido sobre o universo inteiro, lançando as sementes da Boa Nova sobre todas as criaturas e assim dar início ao Reino de Deus no meio dos homens e sobre toda a terra. É por isso que, na celebração da Paixão do Senhor, na Sexta-feira santa, a Igreja reza a Oração universal, para que todos os homens, católicos e não católicos, cristãos e não cristãos, crentes e não crentes, sim, especialmente os mais sofredores dos homens, recebam os benefícios vivificantes deste Sopro Santo do Cristo Crucificado.

Conclusão

Segundo nosso Doutor evangélico, Santo Antônio: “Em nenhum outro lugar o homem pode melhor dar-se conta do quanto ele vale do que se olhando no espelho da cruz” (Sermones Dominicales et Festivi III, pp. 213). Nesse espelho, portanto, estamos frente a frente, cara a cara, olho no olho, com a mais alta, primeira e última vocação do homem: o máximo de empenho, até a morte e morte de cruz, para virmos a ser o que sempre fomos: filhos de Deus, nosso Pai e assim podermos entrar em “comungação” com Ele, nossa origem, nosso princípio, representados pela haste vertical, e em “comungação” com os outros homens, nossos irmãos e todas as demais criaturas, representados pela haste horizontal.

Vale repetir, aqui, o que diz o Papa Francisco acerca da importância do vigor da cruz na vida de cada um de nós: “Sem ela podemos ser tudo: bispos, religiosos, papas, padres, mas jamais seguidores de Cristo, muito menos de Cristo pobre e crucificado” (Cf. Homilia na santa missa com os cardeais, 14 de março de 2013). Mas, finalmente, que vigor é esse, o de um Deus crucificado, vergonha para os judeus e escândalo para os gregos? E, como apresentá-lo e testemunhá-lo numa civilização que se (des)ordena pela busca de prazeres superficiais e, por conseguinte, sem vida interior, sem nenhuma transcendência e carregada de uma tristeza individualista (Cf. EG 2)? Eis a grande questão ou desafio para o hoje e o amanhã de cada um de nós e de toda a humanidade.

SÁBADO SANTO 

No silêncio da noite o Senhor desceu à mansão dos mortos

Leituras: Hoje não há, porque a Palavra está morta, descansando.

Celebração: Igualmente não há, porque o Mistério da Vida também está morto.

“Ao fim da paixão, quando a Palavra de Deus está morta, a Igreja já não tem mais palavras” (Balthasar). É a “Hora” do silêncio. O Filho está morto. Já não há acesso ao Pai. Ele está morto não só pela morte primeira, que é como um sono, mas pela segunda morte, a infernal, que é como um pesadelo. Foi rejeitado como pecado; morreu como maldito (2Cor 5,21; Gl 3,13). O juízo que nos condenava recaiu sobre ele. Ele foi aniquilado. Seu caminho deu numa aporia (no intransitável). Entre o homem e Deus abre-se um hiato intransponível. Eis o “escândalo da cruz” (cfr. Gl. 5, 11).

A percussão deste evento, porém, repercutirá por todo o universo. Tudo ressoará a partir da sonância que emergirá desde este silêncio. Silêncio que, antes de ausência de palavras, significa profunda e amorosa atenção ao mistério insondável que a tudo e a todos contem: Deus.

Assim, do nada do abismo infernal é que irrompe a nova criação: o novo céu e a nova terra, de que nos fala o Apóstolo Pedro (2 Pd 3, 13), as “coisas novas” de que nos falam Isaías (Is 65, 17) e o Apocalipse (Ap. 21, 1). O descenso de Cristo aos infernos é seu triunfo sobre a segunda morte. É a morte da morte segunda, o triunfo sobre o desespero infernal. O “status exinanitionis” (estado de exinanição) se revela, pois, como “status exaltationis” (estado de exaltação). Do mesmo modo, para o discípulo de Cristo, não há outro caminho para ascender a Deus a não ser descendo para o profundo silêncio do nada de cada coisa; a não ser praticando a humildade, isto é, o descenso até o abismo da própria condição de homem mortal e pecador, que, num salto, deixa para trás o desespero e se confia ao Cristo como Libertador e Salvador, como Vida da própria vida, como a Ressurreição em pessoa. Por isso, dizia o Bem-aventurado Egídio: “Se alguém fosse o homem mais santo do mundo e se reputasse o mais vil do mundo, nisto estaria a humildade” (DE 4).

Sábado santo dia do recolhimento, do silêncio, dia para descer humildemente, mas também valentemente, até ao mais profundo abismo de nossos infernos, e de lá saltar para os braços do Pai, porque, agora, é lá que mora o Filho de Deus, o Princípio da vida nos esperando para associar-nos à sua vitória, à sua Ressurreição.

Uma grande Palavra nasce de um grande silêncio. 

Um grande silencio nasce de uma grande palavra. 

ANTES, porém precisam passar pelo VALE DA morte. 

VIGÍLIA PASCAL

Leituras: Gn 1,1-2,2; Sl 103 (104), 1-2a.5-6.10.12.13-14.24.35c (R. cf. 30); Gn 22,1-18; Sl 15 (16), 5 e 8.9-10.11 (R. 1); Ex 14,15-15,1; Sl Ex15, 1-2.3-4.5-6.17-18 (R. 1b); Is 54, 5-14; Sl 29 (30), 2 e 4.5-6.11 e 12a e 13b (R. 2a); Is 55, 1-11; Is 12, 2-3.4bcd.5-6 (R. 3); Br 3, 9-15.32-4, 4; Sl 18 (19), 8.9.10.11 (R. Jo 6, 68c); Ex 36,16-17ª.18-28; Sl 41 (42), 2-3.5; 42 (43), 3-4 (R. 41 (42), 2); Rm 6, 3-11; Sl 117 (118), 1-2.16ab-17.22-23 (R. Aleluia); Mt 28, 1-10.

Tema-mensagem: Na ressurreição o princípio da nova criação

A Igreja, esposa predileta e fiel, procura aguardar a volta do seu Senhor com uma longa Vigília noturna, recheada de belos e significativos ritos, leituras e orações. Podemos aplicar a esta espera as palavras de um poema chinês, em que uma esposa espera pelo seu esposo:

No silencio claro,

O luar.

Abre-se a flor,

Apenas branca,

À noite serena

Do céu.

Na espera de ti,

Meu Senhor.



1. O anúncio da Páscoa

O primeiro momento tem seu início fora da igreja e com a comunidade dos fiéis envolta nas trevas. Apenas a luz da lua cheia reluz no céu. É no meio deste ambiente que se faz a bênção do novo fogo, o fogo do desejo de Cristo de recriar e de reunir todas as coisas na casa do Pai (Cf. Oração); fogo que aos poucos vai se transformando em luz e clarão; clarão que começa a iluminar e a conduzir de novo os fiéis para o seio da Comunidade santa, a Igreja de Cristo, a nova Jerusalém. Desde tempos imemoriais, o fogo reúne os homens e cria comunidade. Agora o fogo de Cristo, simbolizado pelo Círio Pascal, recria a Igreja, que nasceu do lado transpassado de Cristo na Cruz, do qual jorrou água e sangue – Igreja que nasce do costado de Cristo, qual nova Eva do novo Adão.

Por isso, como conclusão deste rito de abertura, comemorando a hora mais silenciosa e alta da noite na qual Cristo ressuscitou, a Igreja, jubilosa canta:

“Exulte o Céu e os anjos triunfantes,

Mensageiros de Deus desçam cantando,

Façam ressoar trombetas fulgurantes

A vitória de um Rei anunciando

.....

Ó noite, verdadeiramente feliz,

Que só tu mereceste conhecer o tempo e a hora

Em que Cristo ressuscitou dos infernos”.




2. O ressuscitado aparece

O caminho do mistério é sempre obliquo, nunca chega a nós de modo direto, pois se fosse assim, o fulgor de sua luminosidade, o simples poder de seu ser, de sua substância, arrebentaria com qualquer criatura. Por isso, como a encarnação, também a ressurreição acontece no oculto, no meio da noite e sem testemunhas. Da mesma forma, os Evangelhos procurando guardar o pudor do mistério apresentam apenas os sinais da ressurreição: o mensageiro do céu, o sepulcro vazio, as vestes dobradas, a pedra retirada, etc. Tudo muito eloquente, mas ao mesmo tempo, difícil de ser expresso em linguagem humana. Por isso, também, as narrações dos evangelhos além de muito variadas e mesmo muito contrastantes, se revestem de imagens e símbolos, beirando, por vezes, às raias do mito. Mas, por outro lado, tudo é proclamado como um mistério realmente acontecido, ou, se quisermos, como um acontecimento misterioso, isto é, verdadeiro, real. Nada de fantasioso ou inventado. Assim, a mensagem escutada pelas “Marias” – “O Senhor ressuscitou realmente (óntos) e apareceu a Simão” (Lc 24,34) – irá reverberar não apenas para a Igreja primitiva, mas também, para toda a Igreja de todos os tempos, tornando-se ela, a Ressurreição, seu único e verdadeiro fundamento.

Assim, Jesus, o crucificado, é agora também o ressuscitado: ressuscitado-crucificado ou crucificado-ressuscitado e as “Marias”, representantes, de novo, da Igreja do Amor, suas primeiras mensageiras junto aos Apóstolos, representantes da Igreja ministerial. Eis que, de novo, como na narrativa da paixão, a Igreja do amor, a “Igreja das mulheres”, se mostra essencial para a Igreja ministerial dos Apóstolos. São duas dimensões da única e mesma Igreja. A solicitude delas em cumprir o obséquio de mensageiras da alegre Mensagem (euangélion) junto dos Apóstolos é recompensada, no evangelho de Mateus que lemos hoje, pela visão do Cristo Ressuscitado: “E eis que Jesus veio ao seu encontro e lhes disse: ‘Eu vos saúdo’. Elas se aproximaram dele e abraçaram-lhe os pés, prosternando-se diante dele” (Mt 28, 9). Com tais gestos, elas testemunham a veneração de sua fé e de seu amor para com o Mestre. Jesus, então, as encoraja: “Não temais. Ide anunciar a meus irmãos que eles devem ir à Galileia; lá é que eles me verão” (Mt 28, 10). Note-se que Jesus, aqui, como no evangelho de João, por ocasião da aparição a Maria Madalena (Jo 20, 17), se refere aos seus discípulos, ou melhor, ao Apóstolos, como “meus irmãos”. Ele, agora, não é mais simplesmente o Mestre e o Amigo, é o Irmão. Ele e os Apóstolos se constituem no fundamento da nova “Fraternidade universal”. São estes “irmãos” do Senhor que receberão a missão de levar o Evangelho por toda a terra e a toda a criatura. Movido por esta mesma razão, 13 séculos mais tarde, também Francisco irá denominar seus companheiros de “Irmãos”: Irmãos menores.

A Ressurreição de Cristo, antes de uma revivescência do que era antes de sua morte, como no caso de Lázaro, é, acima de tudo, uma nova criação: princípio de um novo céu, uma nova terra, uma nova história, uma nova humanidade. Além do mais: “A Páscoa proclama um começo que já decidiu sobre o futuro mais longínquo. A ressureição diz-nos que a transfiguração gloriosa já começou” (Rahner). O sentido do homem, da história e de toda a criação já foi decidido na Cruz e se revelou na Ressurreição de Cristo. Todas as realidades criadas estão se tornando o corpo glorioso de Deus que, aos poucos, chegará à sua plenitude no fim dos tempos. Então, Ele será tudo em todas as coisas.

Neste sentido a nova criação é muito mais admirável que a primeira porque, se a antiga surgiu do puro nada, do vazio (ex nihilo), a segunda surge do nada negativo (nihil negativum), isto é, do nada destrutivo, aniquilador, do pecado, da morte segunda. Até mesmo a culpa se torna uma feliz culpa (felix culpa), como canta a Igreja no canto do “Exultet”, que celebra o eclodir da Ressurreição na hora mais silenciosa da noite santa.

Conclusão

Em tempos em que o niilismo grassa em quase toda a parte, proclamar que no “nada” há um Senhor nobre que, em vez de dominar serve, sim, que serve não apenas todos os bens de que o homem necessita, mas acima de tudo, serve-lhe sua própria Pessoa, seu próprio Corpo e Sangue como comida e bebida, é certamente uma grande e Boa Notícia, Evangelho.




Nós vos adoramos, santíssimio Senhor Jesus Cristo,

aqui e em todas as vossas igrejas

que estão no mundo inteiro e vos bendizemos

porque pela vossa santa cruz remistes o mundo 


(SÃO FRANCISCO)


MISSA DO DIA

Leituras: At 10,34ª.37-43; Sl 117; 1Cor 5.6b-8; Jo 20,1-9 (Lc 24,13-35)

O DESPERTAR DA FÉ, DO AMOR E DA IGREJA

Além de uma Vigília noturna, a Igreja soleniza a Páscoa também com uma missa especial celebrada durante o dia.


1. Na Ressurreição nasce a Igreja e sua missão


As leituras da Missa deste dia, levam a Igreja a celebrar não apenas as aparições do Crucificado que aparece como Ressuscitado, mas também a missão dos Apóstolos e a fundação da Igreja universal (católica). Uma Igreja única e una, mas com duas faces que devem andar sempre juntas e inseparáveis: a Igreja do amor e a Igreja ministerial. A Igreja ministerial nada é sem a Igreja do amor. Assim, o discípulo amado, o Apóstolo João, a quem Jesus confia sua Mãe e Maria, na Cruz, realiza de modo feliz esta unidade.

Movida por este amor, a Igreja ministerial e do amor de Pedro, Tiago, João e Paulo, etc. começa a se expandir pela Galiléia, Judéia e Samaria através do anúncio dos Apóstolos, principalmente de Pedro e Paulo, testemunhando por toda a parte “tudo o que aconteceu” a Jesus, principalmente sua Ressurreição (1ª leitura). Fruto desta pregação e deste testemunho era a fé e o perdão dos pecados (Cf. idem). Por isso, Paulo, exorta os colossenses a se esforçarem para alcançar as coisas do alto, e os coríntios a lançar fora o fermento velho da lei e do farisaísmo (2ª leitura).

2. O pavio que ainda fumegava se reacende

Certamente, de modos diversos, cada vez singulares, esta unidade se realizou também na vida e na morte dos demais Apóstolos, de um modo muito especial, na vida de Pedro. Num dos evangelhos recomendados para a leitura na missa da manhã de Páscoa (Jo 20, 1-9) nos faz ver como protagonistas os três: Maria Madalena, João, o discípulo amado, e Pedro. Os três correm ao sepulcro vazio e atestam que algo surpreendente acontecera. Mas, ainda não podiam compreender que Jesus ressuscitara (cfr. Jo 20, 9). O texto grego faz uso de diversos verbos para dizer “olhar” e “ver”. Maria Madalena “vê que a pedra fora retirada do túmulo”. Para este “ver”, aqui, o grego usa o verbo “blépein” que significa olhar, ver, no sentido de mirar e descobrir alguma coisa. O discípulo amado, o próprio evangelista João, que fala de si como se fosse uma terceira pessoa, corre mais rápido do que Pedro, chega ao sepulcro primeiro. “Ele se inclina e vê as faixas deitadas ali. Todavia não entrou”. “Ver” é aqui, ainda, “blépein”, mirar e ver, simplesmente, a modo de fato, ocorrência. Pedro, porém, entra no sepulcro, e dirige um olhar atento, observa as faixas que envolveram o corpo de Jesus e o pano que cobrira a sua cabeça, enrolado à parte. Para este olhar de Pedro, o grego usa o verbo “theorein”, que significa um olhar atento, contemplativo, observador, que busca, inquire, investiga, procurando ver além do fato. Depois de Pedro, é a vez de o discípulo amado entrar no sepulcro. “Ele viu e creu”, diz o evangelista. Agora, para esse “ver”, o grego usa o verbo ideîn. Do grego, este verbo significa perceber, captar o aspecto (eidos, idea) de alguma coisa, ter a evidência de uma realidade misteriosa, realmente presente, embora oculta aos sentidos e à razão. Aqui estamos no mundo de fé.

A estas alturas do vai e vem ao túmulo, o amor, a fé, a modo de uma brasa do fogo do dia anterior, soterrada pelas cinzas, começa a crepitar no coração das mulheres e dos dois apóstolos, levando-os a buscar o amado e a ter um certo pressentimento de que algo de extraordinário teria acontecido. Mas eles ainda não tinham chegado a uma compreensão do que seria este algo de extraordinário: “Com efeito, eles ainda não tinham compreendido a Escritura segundo a qual Jesus devia ressuscitar dentre os mortos” (Jo 20, 9). E não podiam mesmo porque no mundo da transcendência antes do conhecimento é preciso que chegue o amor. Ao mistério de Deus o amor ocorre rapidamente e se lança, se precipita, antes mesmo de o conhecimento completar o seu curso. Por isso, só depois da graça do reencontro com a Pessoa amada através das aparições, é que as Escrituras começarão a dar aos discípulos a possibilidade de compreender e interpretar o acontecimento da ressurreição (cfr. 1 Cor. 15, 4; At 2, 24-31; 13, 32-37; Lc 24, 27.44-46). Aqui, isto é, nas realidades que ultrapassam nossos sentidos e nossa razão, vale o princípio: para compreender é preciso primeiro crer e amar. Isso evoca o dito da Escritura que se tornou lema para Santo Agostinho e para todos os pensadores medievais: “Se não creres” (e amares) “não compreendereis” (Is 7,9).

Conclusão

Celebrar a Páscoa significa renovar nosso compromisso batismal de levar adiante a nova criação inaugurada por Cristo. Hoje, este compromisso, além de uma ecologia meramente biológica deve levar-nos a pensar e a dispor-nos ao cuidado e ao cultivo do humano de toda a humanidade (Cf. Campanha da Fraternidade). Antes de mais nada faz-se necessário despertar em todos a “consciência de uma origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos... Surge assim um grande desafio, cultural, espiritual e educativo que implicará longos processos de regeneração” (LS 202).

Uma regeneração, porém, que precisa passar, necessariamente, por uma rigorosa e sincera “crítica aos ‘mitos’ da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras)” (LS 210); passar, também, pela necessidade de “recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o MISTÉRIO, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo” (LS 210).

Uma abençoada e Feliz Páscoa a todos,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

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