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O ponto de partida: o encontro com Cristo


Éloi Leclerc

Francisco não nasceu “irmão universal”, mas tornou-se o “irmão universal”, a preço de uma total reviravolta. Como adolescente e como jovem, ele não era aquele homem de paz que admiramos. É claro que seus primeiros biógrafos no-lo apresentam como um ser afável, cortês, aberto aos outros. Entretanto, sob essas aparências sedutoras, ocultava-se um fundo de violência, uma vontade de conquista e de poder.

Nascido em Assis, em 1181, filho de um rico negociante de tecidos, Francisco cresceu no seio de uma família que pertencia à classe emergente, gananciosa e ávida de poder. Nas comunas medievais que se libertaram da tutela feudal, os ricos burgueses, com os comerciantes à testa, pretendem gerir eles próprios seus negócios e exercer o poder.

Levado por esta força social ascendente, também o jovem Francisco nutre grandes ambições. Gosta de aparecer, de brilhar como um sol, de estar acima dos outros, de fazer-se aclamar rei da juventude dourada de Assis.

Com a idade, suas ambições cresceram. Não desejava continuar no negócio de seu pai e ser apenas um comerciante de tecidos. Seus sonhos eram audaciosos, atingiam as estrelas. Esse jovem burguês aspirava tornar-se cavaleiro e até príncipe! Inteligente, hábil e afortunado, podia esperar tudo. Se, dormindo, lhe acontecia sonhar com a casa de comércio de seu pai, ele a via transformada num palácio cujas numerosas salas resplandeciam com o fulgor de todo tipo de armas. E era para ele que brilhavam todas essas armas. Para ele e seus cavaleiros. Seu olhar juvenil, subjugado pela glória, o levava à conquista do mundo.

Ora, a glória naquela época se adquiria com a guerra. E eis que precisamente a guerra se oferece a ele: acaba de estourar entre Assis e Perúsia, a cidade vizinha e rival. Francisco se alista na milícia da comuna. Participa na batalha de Ponte San Giovanni. Mas o combate termina com vantagem para Perúsia. Francisco é feito prisioneiro.

Quando ele volta a Assis um ano depois, está com a saúde abalada e cai doente. Esta doença que se prolonga e o condena à inatividade e à solidão marca uma virada em sua vida. Francisco faz, então, uma retrospecção sobre si mesmo. Experimenta o vazio e descobre a frivolidade de seus anos de juventude.

Não obstante, com a recuperação da saúde, é novamente tomado por suas ambições e decide aliar-se, em companhia de um jovem nobre de Assis, aos exércitos pontifícios que lutam contra os exércitos imperiais no sul da Itália. Vai, enfim, poder realizar seu sonho, cobrindo-se de glória. Mas o projeto muda repentinamente de direção. Mal chegado a Espoleto, Francisco ouve uma voz interior que lhe sugere voltar a Assis. Ele obedece. Doravante sua única preocupação será procurar saber o que Deus espera dele.

A partir daquele momento, Francisco se retira voluntariamente para a solidão das pequenas igrejas abandonadas da aldeia de Assis. A capela de São Damião é um de seus lugares preferidos. Lá, só na penumbra e no silêncio, ele passa horas rezando, contemplando o Cristo bizantino que orna o santuário. Este Cristo crucificado, mas irradiante de paz, fala-lhe ao coração: revela-lhe como é profundo o amor de Deus pelos humanos. É uma revelação impressionante. E Francisco é arrebatado e comovido pelo esplendor deste amor. Através da humanidade de Cristo e de sua vida totalmente entregue, ele acaba de descobrir o olhar misericordioso de Deus sobre o homem.

E seu olhar sobre si mesmo também muda. Seus olhos se abrem e ele vê agora o reverso daquela sociedade mercantil da qual ele é um dos privilegiados. O mundo das comunas, tão cioso de suas liberdades recentemente conquistadas, também tem seus deserdados, seus entregues à própria sorte: os pobres, os humildes, os leprosos. Até aquele dia, Francisco passou ao lado de sua miséria sem vê-la. Agora, ele se sente como que impelido para essas pessoas pobres que se tornam seus novos amigos.

O próprio Francisco contou, em seu Testamento, a mudança radical que se operou então em sua vida e até em sua sensibilidade profunda: “O Senhor me concedeu, a mim Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência: como estivesse em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia com eles. E enquanto me retirava deles, justamente o que antes me parecia amargo, se me converteu em doçura da alma e do corpo”.

Texto do livro “O Sol Nasce em Assis”, de Éloi Leclerc, Editora Vozes.

Fonte: http://www.franciscanos.org.br/

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